Usos e abusos da mercantilização da água

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Via marchamulheres.wordpress.com

Em mais de 200 países, o conglomerado Coca-Cola vende pelo menos um de seus 500 produtos. Compra fontes de água e aufere astronômicos lucros vendendo-as engarrafadas, enquanto a população local perde o acesso à água potável. Além disso, para produzir 1 litro de coca-cola, gasta-se 3 litros de água que, ao não ser tratada, contamina os mananciais.

No México, o presidente Vicente Fox (2000 a 2006), que também foi presidente da coca-cola, privatizou vários aquíferos em benefício dessa empresa, prejudicando seriamente a população. Em El Salvador, a empresa contaminou mananciais. Em Kerala, na Índia, após forte mobilização popular, em 2004, a prefeitura não renovou o contrato com   a empresa: antes, o Tribunal Superior considerara ilegal a extração massiva de água. Inicialmente com licença para extrair provisoriamente 1.224.000 garrafas por dia, a coca-cola passou a extrair 1.500.000 de água limpa por dia, comprometendo gravemente o acesso à água para a agricultura. Uma mulher chamada Mylanna, iniciou, em Plachimada, um movimento contrário; assim, a pequena aldeia de Keral conseguiu fechar a fábrica, informou Vandana Shiva.

Na Colômbia não é diferente; além de ferir legislação trabalhista, a empresa tem usado paramilitares para ameaçar e assassinar sindicalistas. Direitos trabalhistas não são respeitados como no Brasil, Guatemala, Chile, Panamá, México, Rússia. No Brasil, como nos demais locais, a empresa tem contaminado a água.

A água é um bem comum de interesse público de uso comum, portanto, não privatizável. No entanto, o Banco Mundial além de condicionar seus empréstimos à privatização, transforma a água em commodity e pressiona governos e concessionárias públicas a aumentar tarifas.

O governo italiano aprovou lei de privatização da água, mas movimentos organizados exigiram a realização de um referendo que foi realizado em junho de 2011 revogando a lei.

A Nestlé fez propaganda para que mulheres deixassem de amamentar sob o falso argumento da fraqueza do leite materno das mulheres pobres que condenaria as crianças à desnutrição. Líder mundial de comércio de água engarrafada, desde a década de 70, já fora condenada na Suíça pelo crime de exploração de populações empobrecidas em outros países. Foi alvo de várias denúncias por desmineralizar água mineral, o que é ilícito, além de vender água engarrafada contaminada. Em todos os locais em que a Nestlé se instalou, a população foi seriamente prejudicada em seu direito à água. Aliás, Peter Brabeck-Letmathe, presidente do grupo Nestlé desde 2005, maior produtora mundial de alimentos industrialmente processados, considera que a solução para as questões globais é a privatização da água a ser tratada como uma mercadoria como as outras. É um negócio altamente lucrativo: a Nestlé paga, ao município de São Lourenço (MG), um centavo por litro e vende a R$2,20: diferencial de 220%.

Por meio do Movimento de Cidadania pelas Águas, desde 2001, a população de São Lourenço (MG) logrou a realização de várias audiências públicas na Assembleia Legislativa de São Paulo. Apurou-se que, para o engarrafamento da água Pure Life, seu carro-chefe, a Nestlé valia-se de vários ilícitos alterando a composição química das águas minerais, principalmente desmineralizando e acrescentando sais, contrariando o Código de Águas Minerais (Decreto-Lei n. 7841 de 08.08.1945), não sem a conivência de órgãos fiscalizadores. Utilizando-se de poderosas bombas de sucção, retirava mais de meio milhão de litros de água mineral por dia, desde o início da década de 90, sem autorização, quando comprou a marca Perrier e decidiu dominar, em cinco anos, todas as fontes de água potável do mundo. Comprou, em todo Brasil, inúmeras fontes de água.

A contaminação compromete o acesso à água potável. Em Lucas do Rio Verde (MT), as plantas dos quintais dos domicílios murcharam: foi o anúncio de algo muito pior. A ilícita aspersão aérea de agrotóxicos nas extensas monoculturas da soja, contaminou não só a terra e o ar, mas também a água, inclusive a subterrânea. Pesquisa da Fiocruz constatou que a água chegava às torneiras domiciliares já comprometida por uso excessivo de agrotóxicos: em média 136 litros por pessoa ao ano. Em 2010, Danielly Palma, em sua pós-graduação, coletou leite materno de 62 mães nutrizes, a maioria não residente na lavoura. Todas as amostras, sem exceção estavam contaminadas (inclusive por organoclorados proibidos desde 1998), sendo: 100% por DDE; 44% por beta-endossulfam; 37% por deltametrina (um piretróide); 32% por aldrin; 32% por alpha-endossulfam (outro isômero do endossulfam); 18% por alpha-HCH, 13%  por DDT; 11% por trifularina (um herbicida); em 6% por lindano.

Essas substâncias podem causar má formação do feto, distúrbios endócrinos, inclusive câncer, podendo comprometer várias gerações. É um dos preços mais elevados que a população paga pelo agro-hidronegócio, como se voltássemos ao século XVI, com extensiva monocultura voltada à exportação. Em Lucas do Rio Verde, a predominância é a monocultura da soja que gasta mil litros de água para produzir um quilo de soja. Pela contaminação, a população não tem acesso à água potável. Wanderlei Pignati, professor da Universidade Federal de Mato Grosso, em pesquisa realizada durante dois anos, constatou que 10 poços artesanais, dos municípios de Lucas do Rio Verde e Campo Verde, estavam contaminados por agrotóxicos.

A CBC (Companhia Bulbos do Ceará), empresa holandesa, planta bulbos de Amarillis. Caladium e Canna indica, no município de Paraipaba (90 km de Fortaleza), utilizando 29 tipos de agrotóxicos. A 100 metros da CBC, a população local apresentou problemas respiratórios, além de pruridos na pele, provavelmente por contaminação da lagoa da Cana Brava. Na fazenda vizinha, 18 bois morreram. Aline Sasahara estivera filmando e, enquanto conversava com o proprietário, “um cara numa caminhonete, dentro da área da CBC, um funcionário, ficava cantando pneu pra cima e pra baixo. Nitidamente para nos coagir”, afirmou. Ela precisou sair escoltada pelo fazendeiro.

“O uso dos agrotóxicos não significa produção de alimentos, significa concentração de terra, contaminação do meio ambiente e do ser humano”, afirma Raquel Rigotto, professora e pesquisadora do Departamento de Saúde Comunitária da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará e Coordenadora do Núcleo Tramas (Trabalho, Meio Ambiente e Saúde.

Na Chapada do Apodi, (Ceará e Rio Grande do Norte), em amostras coletadas a mais de 100m de profundidade  foram encontradas mais de 100 tipos diferentes de agrotóxicos, afirma Raquel Rigotto. José Maria Filho, da comunidade de Tomé, em Limoeiro do Norte (região da Chapada do Apodi), líder comunitário, ambientalista e defensor dos direitos humanos, empenhou-se nas denúncias sobre contaminação das águas por aspersão aérea de agrotóxicos. Seu empenho levou à aprovação, em 20 de novembro de 2009, da Lei 1.278/2009 que proibia, no município, a pulverização de agrotóxicos por aeronave. A atuação de José Maria provocou a ira de grandes empresas da Chapada do Apodi, como, entre outras, BANESA, Del Monte, Frutacor e Nólem. No dia 21 de abril de 2011, José Maria foi assassinado, com 25 tiros, em função de suas denúncias contra as empresas do agronegócio que continuavam a pulverização aérea de agrotóxicos. João Teixeira Junior, mandante do crime, é proprietário da Frutacor. Um mês após o assassinato, a lei 1.278/2009 foi revogada. A United Fruit, da qual a Del Monte é subsidiária, tem um histórico de assassinatos na Colômbia, Nicarágua, Guatemala…

Em 1997, FHC isentou os agrotóxicos em 60% do ICMS, alguns 100%. Desde 2008, o Brasil é o maior consumidor mundial de agrotóxicos: cerca de 5,2 litros por pessoa ao ano. O Rio Jaguaribe, que abastece Fortaleza, atravessa áreas de intenso uso de agrotóxicos, eufemisticamente chamados defensivos agrícolas. Em meio à contaminação, ao desrespeito às leis trabalhistas, à grilagem e concentração da terra, à invasão do território da pequena agricultura e do sequestro da água potável, mulheres reagiram contundentemente. Como parte da 3ª Ação Internacional da Marcha Mundial das Mulheres, houve um evento chamado 24 horas de Ação em defesa da Chapada do Apodi: do nascer ao por do sol, das 12 à 13 horas, desde o extremo oriente até o extremo oeste, foram realizadas várias ações em solidariedade às mulheres ameaçadas pelo avanço do agro-hidronegócio na Chapada do Apodi.

Fala-se em biocombustíveis, como se fossem ecológicos. O termo mais adequado é, pois, agrocombustíveis. Ademais, para produzir etanol de cana de açúcar, o agronegócio degrada o solo, concentra a terra; com o uso de agrotóxicos, põe em risco a biodiversidade, contamina o solo, o ar, a água, comprometendo gravemente a saúde da população. É importante afirmar que não é possível garantir o uso de agrotóxicos sem contaminação: o uso seguro é uma falácia.

A petroleira Texaco/Chevron despejou 680 mil barris de óleo no solo e nos mananciais da Amazônia equatoriana. A terra se tornou infértil, o ar irrespirável, peixes e animais de médio e grande porte morreram. Quatro povos indígenas foram desalojados.

Além de consumir grandes quantidades de água potável, indústrias têm descartado rejeitos sem adequado tratamento, contaminando mananciais que abastecem cidades. Não são raras as ocorrências de anencefalia. Crustáceos do litoral paulista estão contaminados, inclusive por metais pesados, e exibem alterações orgânicas, informa Marcelo Pinheiro, professor da UNESP, desde 1998 pesquisando caranguejos-uçá.

Não só o uso de agrotóxicos é inseguro, mas também a maioria dos componentes químicos usados na mineração, na prospecção de combustíveis fósseis e nas indústrias. Agricultora indígena, Máxima Acuña de Chaupe tem sido perseguida por defender seu território (Peru) contra a invasão da mineradora Yanacocha, maior exploradora de ouro da América dos Sul. Já destruiu sua casa por três vezes, matou seus cães e ovelhas e ameaça seus quatro filhos, com participação da polícia. A contaminação por usinas atômicas é outro capítulo que merece artigo específico, assim como o desmatamento.

Vive-se o antropoceno com grande irresponsabilidade. A procuradora Sandra Kishi informou que há dez anos já se sabia da estiagem mas o governador paulista não informou a população, nem tomou providência. O jornalista Ulisses Capozzoli declarou que a imprensa tem sido seletiva falando sobre estiagem sem tratar da responsabilidade política.

Grande parcela de 70% da água doce é usada na irrigação do agro-hidronegócio desviando e represando rios (tantas vezes com recursos públicos) em detrimento das populações locais; a maior parte dos outros 20% são usados pelas grandes indústrias, a preço subsidiado. Quase 40% da água tratada é desperdiçada pelas próprias empresas de água e saneamento, tantas vezes permitindo vazamento de esgoto contaminando mananciais e também águas subterrâneas. Grande parte da água potável é consumida nos condomínios fechados, nos edifícios e clubes de luxo. Por ocasião das estiagens, é à população empobrecida que se pede que se economize o precioso líquido.

Historicamente, as mulheres têm protegido as nascentes de água e resistido aos desmatamentos. Não sou a favor do desperdício mesmo quando há água em abundância; em períodos de maior escassez, não é a quem sempre protegeu a água E menos desperdiça que se deve solicitar maior sacrifício, muito menos às mulheres, mas são elas que tem sofrido as maiores consequências. No país que abriga a maior quantidade de água doce, a população corre o risco de não ter acesso à água potável.

*Iolanda Toshie Ide é militante da Marcha Mundial das Mulheres em Campinas, SP.

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