A Visibilidade Lésbica e Bissexual que queremos x a (In)Visibilidade que temos

Via Marcha Mundial das Mulheres – marchamulheres.wordpress.com

Por Célia Alldridge.

Esse post foi inspirado na roda de conversa ‘Visibilidade Lésbica e Bissexual: Minha vida não é uma novela!’ organizada pelo Coletivo Les.Bi da Marcha Mundial das Mulheres/SP no 26/07. Espero que minhas companheiras e as participantes da roda de conversa se identifiquem nesse post.

Post Visibilidade Les.Bi (Foto Marcela Mattos)

No início do mês de agosto, mês da visibilidade lésbica e bissexual no Brasil, aproveitamos para refletir sobre a (in)visibilidade que conquistamos e/ou perdemos na mídia, na política e nas ruas no último período. Somos (mais) visíveis hoje? Quê visibilidade é essa, e como a sociedade tem reagido a nós? Estamos representadas pelo beijo entre mulheres na novela?! E se chegamos a ter espaço na novela das nove, ainda precisamos de um mês de visibilidade?

Antes de entrar no debate sobre a visibilidade, talvez tenhamos que estabelecer um ponto de partida que muitas vezes “esquecemos”: a relação entre a (hetero)sexualidade, o gênero e o sistema patriarcal. Tendemos a “esquecer” que as pessoas que se relacionam afetiva ou sexualmente com pessoas do outro sexo também têm uma sexualidade. A heterossexualidade é normativa, defendida implicitamente e explicitamente na sociedade, e ela vai além da sexualidade e prática sexual em si. Ela é uma instituição que “controla as relações entre as mulheres e os homens, ordenando não somente a vida sexual, mas também as divisões de trabalho e recursos na esfera doméstica e fora dela” (tradução livre, Stevi Jackson, 2006)[1]. Ou seja, a heterossexualidade não somente molda as relações sexuais das mulheres, mas também reforça o próprio sistema patriarcal na sua imposição do trabalho doméstico como nossa responsabilidade ‘natural”, além da construção e normatização da família (nuclear).

Então onde estamos nós, as mulheres lésbicas e bissexuais? Sendo não-heterossexuais (e, portanto, consideradas “uma minoria” aos olhos da sociedade, embora contestemos essa categorização) será que “escapamos” desses moldes institucionais e heternormativos de família, maternidade compulsória e trabalho? Se formos considerar a recente novela das nove, Em família, a resposta é definitivamente não. Pois para que pudesse ser aceita, a personagem da Marina, considerada por muitos/as como “destruidora da família e do casamento” (como tanto ouvimos falar no transporte público, no trabalho, etc.), ela tem que se casar seguindo as tradições heterossexuais. O beijo e o carinho entre ela e a Clara no casamento foram até um pouco mais realistas, mas será que foram permitidos na novela para mostrar o amor e tesão entre duas mulheres, ou para agradar ao público masculino heterossexual para quem somos objetos de desejo, fantasias ou figuras sexy?

A realidade é que, na maioria dos casos, continuamos sendo representadas na mídia e artes visuais por homens, sejam criadores de novela, sejam diretores de filmes. Então somos hiper-sexualizadas (como no filme Azul é a cor mais quente), ou somos as ricas burguesas que conseguem “comprar” seu espaço social (como no filme Flores Raras) ou seguimos papeis sociais “naturais” na esfera privada, como a mãe tradicional; e pública, como a “lésbica livre” (como na novela das nove) ou ainda somos representadas como a “sapatão mecânica” (como no seriado ‘Pé na Cova’). De fato, as novelas e os filmes atingem um público muito grande e poderíamos argumentar que isso aumenta a nossa visibilidade, mas será que nos encaixamos nesses estereótipos? Ou, talvez, podemos aproveitar das pequenas brechas que possibilitam a sensibilização da sociedade, como o filho da Marina na novela das nove que lida com naturalidade com o novo namoro da mãe e é citado como dando uma lição de respeito aos/às adultos e adultas?

Post Visibilidade Les.Bi (Foto Roseane Ribeiro) (1)

A dois meses das eleições, também somos mais visíveis como “moeda de troca” na disputa política e eleitoral (do mesmo jeito que o aborto aparece nos discursos eleitorais). Num contexto em que as duas principais figuras políticas federais têm um perfil extremamente conservador – referindo à evangélica conservadora Marina Silva da Rede/aliança com PSB, e ao economista conservador Aécio Neves do PSDB – o debate família nuclear versus direitos da população LGBT já se acirrou. Sem falar do Pastor Everaldo, candidato à presidência pelo PSC, partido do Marcos (In!)Feliciano, ex-presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara Federal. E é justamente na disputa pela Câmara que o jovem candidato do PSDB Matheus Sathler vem se destacando com seu discurso de ódio contra a população LGBT e sua promessa de doar metade de seu eventual salário de parlamentar para “o combate e a recuperação de crianças vítimas do estupro pedófilo-homossexual”, nesse sentido dando uma clara mensagem que os pedófilos são homossexuais e os homossexuais são pedófilos. Ele também defende a criação do “kit macho” e do “kit fêmea” para defender crianças da “influência homossexual” e da campanha de sensibilização nomeada “kit gay”, que foi derrubada pela Câmara em 2013.

Em relação à nossa visibilidade na rua, analisamos que na medida em que os nossos direitos formais avançam, parece que a “vitrine fica maior’”, e, portanto, fica mais fácil nos acertar com pedras simbólicas e outras formas de violência. Reconhecemos a melhoria na situação de violência ao longo prazo, mas fomos vítimas de vários casos de violência gratuita e brutal ao longo do último período. É ataque relâmpago no centro da cidade, é assedio recorrente no transporte público, é garrafada na Augusta, é um carro jogado em cima da gente logo depois da Caminhada Les.Bi de SP no início de maio, para nomear alguns casos. A ironia perversa é que é mais fácil sermos agredidas / mortas por nossos ex-companheiros de que contar com eles nos nossos próximos casamentos (como aconteceu na novela das nove). Aprendemos a ser mais cautelosas, a nos invisibilizar em muitos espaços que compõem nossa vida cotidiana. E a própria invisibilidade também é uma violência.

Ao mesmo tempo, temos nossas estratégias de resistência. Vemos cada vez mais jovens mulheres na rua de mãos dadas, em vários cantos da cidade, desafiando as regras héteros. Organizamo-nos coletivamente em cada vez mais espaços, como o Espaço Les.Bi de SP onde a Marcha participa ativamente na construção de um espaço de visibilidade e protagonismo de lésbicas e bissexuais (por exemplo, a Caminhada Les.Bi de SP em maio e as atividades desse mês de visibilidades lésbica e bissexual. Mais informações abaixo). Também nos aliamos com o Levante Popular que realizou seu II Acampamento Nacional do Levante Popular da Juventude em abril, em Cotia, SP, com um incrível terço dos/as mais que 3000 participantes sendo jovens LGBT organizados/as!

Post Visibilidade Les.Bi (Foto Maria Angelica Lemos)

Nós, lésbicas e bissexuais feministas, estamos constantemente disputando o discurso hegemônico da política conservadora, da mídia burguesa e de ódio na rua. Não é fácil construir vidas que “escapam” das regras e imposições da heteronormatividade, e reconhecemos os desafios que enfrentamos nas nossas vidas privadas e coletivas. Seguimos fortalecendo nossas propostas coletivas e horizontais e reforçamos o significado do mês da visibilidade lésbica e bissexual como uma oportunidade para desconstruir a categoria de “minoria”, de lutar contra a “guetização” dos nossos espaços e a segregação das nossas vidas, e de mostrar nossa produção cultural e militante. Somos escritoras, poetas, músicas, cantoras, artistas, militantes e sujeitos políticos do centro e da periferia. E somos cada vez mais protagonistas da nossa história!

Referências:

– Jackson, S (2006) Heterosexuality, Sexuality and Gender: Re-thinking the Intersections. em Intersections between Feminist and Queer Theory, (eds) Richardson, D., McLaughlin, J. and Casey, M.E.

*Célia Alldridge é militante da Marcha Mundial das Mulheres de SP

[1] Nesse capítulo, o Jackson reforça essa afirmação, explicando que “[d]e fato, a heterossexualidade compulsória é tão efetiva justamente por conta da sua institucionalização como muito além da relação sexual. Mas não é um ente monolítico: [a heterossexualidade] é sexual e assexual, institucionalizada publicamente mas muitas vezes experimentada com privada e intima, conservada pelas práticas cotidianas e ao mesmo tempo parece totalmente comum e presumida” (tradução livre, 2006)

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