O Plano Municipal de Educação está sendo debatido em vários municípios brasileiros. Uma das principais críticas fundamentalistas ao PME diz respeito à proposta de implementação do debate sobre Gênero e Diversidade nas escolas, visando superar desigualdades e hierarquias no âmbito escolar. Intitulada por alguns como “Ideologia de gênero”, a medida tem sido alvo de severas críticas. Os argumentos contrários defendem que a discussão vai contra os princípios da “família tradicional brasileira”. Deste modo, em diversas localidades, grupos ligados a segmentos religiosos e políticos conservadores estão pedindo a retirada da proposta do plano. Em Mossoró, o assunto ganhou notoriedade nos últimos dias. Na manhã da última terça-feira, 23, a Câmara Municipal dos Vereadores de Mossoró aprovou a medida que retira o debate sobre Gênero e Diversidade do PME. O projeto aguarda agora a apreciação do prefeito Francisco José Junior.
Precisamos nos mobilizar contra a aprovação do plano por entendermos a importância e a necessidade da inclusão dessa temática nos espaços escolares. O debate sobre Gênero e Diversidade possibilita a formação continuada da comunidade escolar visando a elaboração de estratégias para combater o sexismo, o preconceito, a LGBTfobia, a gravidez na adolescência, a violência sexista. É preciso entender a realidade das alunas e dos alunos promovendo a diversidade, desconstruindo a ideia da masculinidade hegemônica, da mulher como sexo frágil, da heteronormatividade.
Para se ter uma ideia do quanto a discussão destes pontos se faz necessária no ambiente escolar, podemos citar o caso da adolescente de 12 anos que foi estuprada por três outros adolescentes no banheiro da escola onde estudava, na cidade de São Paulo. Além da agressão sofrida, a menina ainda se sentiu culpada pelo ocorrido e desculpou-se com a mãe quando foi relatar a barbárie a qual foi submetida. Casos como este não se limitam apenas às grandes metrópoles, um exemplo disso é o caso do assassinato de uma adolescente de 16 anos dentro do banheiro de uma escola pública, em José da Penha, RN, no ano de 2014. O crime foi cometido por um homem que assediava a jovem.
Estes são apenas alguns exemplos dos tipos de opressão que as mulheres podem sofrer dentro das escolas. Há também a violência simbólica, o machismo que exclui desde a infância as nossas meninas e ensina-lhes qual deve ser o seu papel no mundo: esposa submissa, abaixo dos homens no mercado de trabalho, única responsável pelas atividades domésticas, conformada, vulnerável, insegura.
Com a aprovação deste projeto de lei ficam proibidos os diversos debates que o Centro Feminista 8 de Março e a Marcha Mundial das Mulheres realizavam em diversas escolas dos municípios para falar dos direitos das mulheres, deixando de falar sobre o combate à violência contra as mulheres, a gravidez na adolescência, sexualidade entre outros temas.
É preciso debater Gênero e Diversidade nas escolas para evitar que mais meninas sejam estupradas, para evitar que outros meninos se tornem estupradores, para evitar que a vítima se sinta constrangida e obrigada a pedir desculpas pela violência sofrida, para evitar que meninas sejam assediadas dentro e fora das escolas e se silenciem por medo de denunciar seu opressor, para que coisas deste tipo deixem de fazer parte do calendário escolar das nossas alunas, dos nossos alunos.
A educação pública não pode se basear exclusivamente pelos princípios religiosos fundamentalistas que acreditam na ilusão de um modelo de família perfeita em detrimento dos demais arranjos familiares. Dizer que a verdadeira família é aquela (e só aquela) constituída por um homem, uma mulher e suas filhas e filhos é negar a diversidade, é sabotar os direitos das demais pessoas que se enquadram em outros arranjos familiares. Há famílias compostas apenas pelos avós e suas netas e netos, sobrinhos criados por tias, filhas de mãe solteira, filhos de pai viúvo, assim como há as famílias compostas por casais homoafetivos, com dois pais ou duas mães e seus filhos e filhas. Todos esses arranjos são compostos por indivíduos portadores de direitos, pessoas que pagam seus impostos e que têm tantos direitos quando os fundamentalistas religiosos. Negar a existência desses grupos, desses arranjos, além de hipocrisia, é desumano e inconstitucional, haja vista a premissa de que o estado deve ser laico. Laico? Como podemos pensar um estado laico em um momento tão delicado como este no qual grupos religiosos querem impor seus dogmas e suas crenças à toda a população?
Dizer que o estado deve ser laico significa que todas as religiões devem ser respeitadas, porém não significa só isso. Significa também que o estado não deve estar ligado a nenhuma crença. Deste modo, a medida adotada pela Câmara dos Vereadores de Mossoró que aprovou a retirada da discussão sobre Gênero e Diversidade do Plano Municipal de Educação é no mínimo inconstitucional, já que foi feita a partir de fundamentos ligados à religião, a uma religião específica. Além disto, a votação aconteceu sem a participação popular, fruto de uma manobra para tentar usurpar os direitos das mulheres e LGBTs.
Vale ainda o esclarecimento acerca do uso do termo “Ideologia de gênero”. Em primeiro lugar, não existe este termo no Plano Nacional de Educação, a partir do qual o PME foi formatado. O que o projeto de lei, em seu texto original, prevê são ações voltadas para a superação das desigualdades educacionais, com destaque para a promoção da igualdade racial, regional, de gênero e de orientação sexual. A quem interessa a retirada desses temas? A quem interessa a invisibilidade das mulheres, negras e negros e da população LGBT? Falar sobre Gênero e Diversidade nas escolas não significa induzir as alunas e os alunos a seguir uma orientação sexual (como se isso pudesse ser ensinado), mas atuar de forma contínua para a formação de cidadãs e cidadãos cada vez mais respeitosos com as decisões dos demais, livres do preconceito e da discriminação, uma formação voltada para o respeito das diferenças. Em segundo lugar, é preciso ressaltar que gênero não é uma ideologia. Gênero é uma construção social sobre aquilo que se entende como masculino e feminino. Diferente do sexo, o gênero não se define a partir dos cromossomos X e Y. Deste modo, o gênero não é uma ideologia, e sim a desconstrução de uma ideologia que atribuí à biologia a definição do que é masculino e feminino, esquecendo-se que o ser humano, enquanto sujeito, dotado de subjetividade, não se trata de uma simples equação XX, XY.
É neste sentido, e embasadas por todos os argumentos aqui expostos, que nós do Centro Feminista 8 de Março apelamos à consciência do senhor prefeito desta cidade, Francisco José da Silveira Junior, para que não se deixe contaminar por ideias simplistas e excludentes, e para que vete o projeto aprovado pela Câmara Municipal dos Vereadores sem o conhecimento antecipado da sociedade e sem a participação popular.
Conceição Dantas,
Coordenadora Geral do Centro Feminista 8 de Março.